segunda-feira, 5 de julho de 2010

Um organismo sintético?

Um organismo sintético? (escrito originalmente em 07/2010)

"Podemos levantar uma hipótese de que seria viável construir um genoma artificial o qual usasse códigos de quatro bases. Supõe-se que um organismo capaz de usar este ‘código expandido’ possa ser também capaz de catalisar reações químicas impossíveis para outro organismo."



Uma das mais tradicionais revistas de ciência, a americana Science publicou na sua edição de 02 de julho de 2010 um artigo com o título ‘Criação de uma célula bacteriana controlada por um genoma sintetizado quimicamente’ (Creation of a Bacterial Cell Controlled by a Chemically Synthesized Genome, D. G. Gibson et al. Science Volume 329, págs 52 - 56).
Esta publicação foi amplamente comentada na mídia como ‘a criação do primeiro organismo sintético’ e uma parte da imprensa acabou superestimando as implicações da pesquisa e as conseqüências éticas da mesma. Que se deixe claro, os resultados são sim muito importantes, é inegável. Mas são mais uma prova de conceito, ou seja uma demonstração técnica que apóia uma teoria consensualmente acita, do que uma descoberta inteiramente nova e revolucionária. O genoma implantado foi gerado quimicamente a partir de informações existentes no disco rígido de um computador mas este genoma prostético contém praticamente informação pré-existente pois se baseou no genoma de outra bactéria. Além disso, toda a informação contida no genoma foi acessada e codificada pela maquinaria celular de uma bactéria pré-existente, a qual teve o genoma removido. De qualquer forma, os resultados mostram que é possível alterar as informações do genoma prostético fazendo com que a célula sintética possa ser bem diferente das formas atualmente encontradas. Muito se espera que esta estes resultados possas avançar a área biotecnológica, como por exemplo nos campos de produção de energia e limpeza de vazamentos de petróleo, dois problemas bem atuais.
A criação de uma vida completamente nova pode vir da associação entre a tecnologia acima descrita com outras duas igualmente impressionantes. A informação contida no genoma tem que ser traduzida para produzir as proteínas, uma classe de biomoléculas extremamente importantes e que realizam a maioria das funções celulares atuando principalmente como catalisadores. As proteínas são formadas por 20 aminoácidos naturais (ou largamente encontrados na natureza) cujas posições na proteína são determinadas por sequências de três bases cada, que são consecutivas e estão localizadas no gene. Como existem quatro bases naturais no DNA, são possíveis 64 (4x4x4) arranjos (ou códigos) diferentes, mais do que suficiente para acomodar os 20 aminoácidos existentes. Alguns pesquisadores conseguiram interferir neste processo de modo a produzir um número muito maior de aminoácidos do que os 20 existentes na natureza e de modificar os ribossomos (os ‘leitores’ dos códigos dos genes) de modo que passassem a ‘entender’ um código com quatro bases consecutivas que possibilitam 256 (4x4x4x4) arranjos diferentes. Para saber mais sobre estes trabalhos leia:
1) Liu & Schultz ‘Adding new chemistries to the genetic code.’ Annu Rev Biochem. 2010;79:413-44.
2) Neumann et al. ‘Encoding multiple unnatural amino acids via evolution of a quadruplet-decoding ribosome’ Nature 464, 441-444 (18 March 2010)
Podemos levantar uma hipótese de que seria viável construir um genoma artificial o qual usasse códigos de quatro bases. Este genoma prostético seria implantado em uma célula contendo ribossomos capazes de ‘ler’ este código e de produzir proteínas constituídas por um vasto número de aminoácidos diferentes. Supõe-se que um organismo capaz de usar este ‘código expandido’ possa ser também capaz de catalisar reações químicas impossíveis para outro organismo. Contudo, muito ainda temos que aprender antes de se chegar neste estágio. Compreendemos muito pouco da estrutura das proteínas constituídas ‘apenas’ de aminoácidos naturais, quanto mais destas ‘proteínas de ficção’ produzidas a partir de um código expandido.
Certamente, as questões éticas devem ser levadas em conta em qualquer tipo de pesquisa e este assunto fica para outro post.